Encontra-se em discussão no âmbito do Poder Judiciário brasileiro a questão de qual seria a alíquota máxima do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), se ela existe mesmo ou se os muninícipios e o Distrito Federal podem estipular tal percentual como quiserem.
O cerne da questão diz respeito à recepção ou não do artigo 1º, II da Resolução do Senado nº 99/1981 pela Constituição de 1988.
“RESOLUÇÃO DO SENADO Nº 99/1981.
Art. 1º. as alíquotas máximas do imposto de que trata o inciso I do art. 23 da constituição Federal, serão as seguintes, a partir de 1º de janeiro de 1982:
I – transmissões compreendidas no sistema financeiro de habitação a que se refere a Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964 e legislação complementar:
a) sobre o valor efetivamente financiado: 0,5% (meio por cento);
b) sobre o valor restante: 2% (dois por cento);
II – demais transmissões a título oneroso: 2% (dois por centro); (…)”
A tese dos contribuintes é de que, em suma, a Resolução do Senado nº 99/1981 foi recepcionada como uma lei complementar regulamentadora de uma limitação constitucional ao poder de tributar, conforme previsto pelo artigo 146, II da CFRB/1988. Que limitação seria essa? Ora, o efeito confiscatório dos tributos, conforme previsto pelo artigo 150, IV da Carta Maior.
“CONSTITUIÇÃO D REPÚBLICO FEDERATIVO DO BRASIL DE 1988 TÍTULO VI Da Tributação e do Orçamento CAPÍTULO I DO SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL Seção I DOS PRINCÍPIOS GERAIS (…)
Art. 146. cabe à lei complementar: (…) II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar; Seção II DAS LIMITÇÕES DO PODER DE TRIBUTAR Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…) IV – utilizar tributo com efeito de confisco;”
Até o momento foram proferidas diversas sentenças e acórdãos negando a existência de uma alíquota máxima do ITBI, devendo ser destacado o acórdão da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal no ARE 1479224/SP, ementa a seguir transcrita.
“AGRAVO INTERNO. REURSO EXTRORDINÁRIO COM AGRAVO. FUNDAMENTAÇÃO A RESPEITO DA REPERCUSSÃO GERAL. INSUFICIÊNCIA. RESOLUÇÃO 99/81 DO SENDO FEDERAL. RECEPÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL EXCLUSIVAMENTE EM RELAÇÃO AO ITAMD. INAPLICIDADE EM RELAÇÃO AO ITBI. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO NÃO CONFISCO . REEXAME DE FATOS E PROVAS. IMPOSSIBILIDDE. SÚMULA 279/STF.1 . Os recursos extraordinários somente serão conhecidos e julgados, quando essenciais e relevantes as questões constitucionais a serem analisadas, sendo imprescindível ao recorrente, em sua petição de interposição de recurso, a apresentação formal e motivada da repercussão geral, que demonstre, perante o Supremo Tribunal Federal, a existência de acentuado interesse geral na solução das questões constitucionais discutidas no processo, que transcenda a defesa puramente de interesses subjetivos e particulares. 2.A obrigação do recorrente em apresentar formal e motivadamente a preliminar de repercussão geral, que demonstre sob o ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, a relevância da questão constitucional debatida que ultrapasse os interesses subjetivos da causa, conforme exigência constitucional, legal e regimental (art. 102, § 3º, da CF/88, c/c art . 1.035, § 2º, do CPC/2015), não se confunde com meras invocações desacompanhadas de sólidos fundamentos no sentido de que o tema controvertido é portador de ampla repercussão e de suma importância para o cenário econômico, político, social ou jurídico, ou que não interessa única e simplesmente às partes envolvidas na lide, muito menos ainda divagações de que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é incontroversa no tocante à causa debatida, entre outras de igual patamar argumentativo. 3. conforme a jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, a Resolução do Senado 99/81 foi recepcionada pela constituição Federal de 1988 exclusivamente em relação ao Imposto sobre Transmissão ausa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITAMD) de competência dos Estados . 4. Na hipótese dos autos, a controvérsia gira em torno da alíquota do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) de competência dos Municípios. 5. Em relação à suposta violação ao princípio do não confisco, o acolhimento do recurso passa necessariamente pela revisão das provas . Incide, portanto, o óbice da Súmula 279 desta CORTE: Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário. 6. agravo Interno a que se nega provimento. Na forma do art . 1.021, §§ 4º e 5º, do código de Processo ivil de 2015, em caso de votação unânime, fica condenado o agravante a pagar multa de um por cento do valor atualizado da causa ao agravado, cujo depósito prévio passa a ser condição para a interposição de qualquer outro recurso (à exceção da Fazenda Pública e do beneficiário de gratuidade da justiça, que farão o pagamento ao final).” (STF – ARE: 1.479.224 SP, relator.: min. ALEXANDRE DE MORAES, data de julgamento: 22/4/2024, 1ª Turma, data de publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 30-04-2024 PUBLIC 02-05-2024)
A referida decisão foi extremamente mal fundamentada. Não foram rebatidos os argumentos do contribuinte e a Turma limitou-se a mencionar suposta jurisprudência do STF (AI 168.967 RS) no sentido de que não haveria alíquota máxima para o ITBI na vigência da Constituição de 1988.
Em consulta a tal decisão, é facilmente verificável que o caso anteriormente analisado pela Corte Suprema era um aso de ITCMD e não houve qualquer menção da Corte no AI 168.967/RS no sentido de que a Resolução do Senado nº 99/1981 não teria sido recepcionada quanto ao ITBI. A decisão menionada pela 1ª Turma está abaixo transrita, na íntegra.
“A pretensão recursal deduzida nestes autos revela-se inacolhível. A tese sustentada pela parte agravante foi desautorizada por ambas as Turmas do Supremo Tribunal Federal (Ag 147.490-5-RS (AgRg), Primeira Turma, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, DJU de 01.10.93 e Ag 150.617-3-RS, Segunda Turma, Rel. Min. MARÇO AURÉLIO). Esta corte, ao apreciar o thema decidendum, salientou que a Resolução nº 99/81 do Senado Federal foi objeto de recepção pela nova ordem constitucional no que concerne à estipulação das alíquotas máximas do imposto de transmissão causa mortis. onstituição Federal de 1988, ao proceder à discriminação das competências tributárias, atribuiu aos Estados-membros e ao Distrito Federal o poder para instituírem o imposto sobre transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens ou direitos. O exercício dessa competência impositiva sujeita-se (art. 155, I, a), no entanto, além dos padrões normativos fixados pela Lei Fundamental, a determinados requisitos constitucionais específicos, dentre os quais avulta, por sua importância, a questão da definição das alíquotas. A carta Federal prescreve que essa espécie tributária “terá as suas alíquotas máximas fixadas pelo Senado Federal”. a vigente carta Política deferiu, pois, ao Senado (art.155, § 1º, IV) da República o poder de estipular, mediante resolução, em seu grau máximo, as alíquotas pertinentes à exação tributária em causa. Essa providência adotada pelo legislador constituinte teve por finalidade precípua conter eventuais excessos que os Estados-membros pudessem cometer no exercício concreto da competência impositiva que lhes foi atribuída, em tema de imposto sobre transmissão causa mortis, pela carta Federal. Os limites máximos estipulados na resolução senatorial são inultrapassáveis, razão pela qual a autonomia dos Estados-membros sofre, nesse ponto, inquestionável restrição. É por essa razão que a doutrina, versando o tema sub examine, adverte, verbis: “Por último, estabelece a Lei Magna que (CELSO RIBEIRO BSTOS, “curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário”, p. 255,1991, Saraiva) compete ao Senado Federal fixar as alíquotas máximas do imposto. Note-se que a determinação das alíquotas aplicáveis cabe à lei ordinária estadual, obedecido o limite máximo estabelecido pelo Senado Federal.”(grifei) Também perfilham igual orientação IVES GANDRA MARTINS (“Sistema Tributário na constituição de 1988”, p. 208, 1989,Saraiva),JOSÉ AFONSO DA SILVA (“curso de Direito constitucional Positivo”, p. 613, 9ª ed./3ª tir.,1993, Malheiros), RUYBARBOSA NOGUEIRA (“urso de Direito Tributário”, p. 135, item n. 22, 9ª ed.,1989, Saraiva) e o saudoso Ministro ALIOMAR BALEEIRO (“Direito Tributário Brasileiro”, p. 174, 10ª ed., revista e atualizada por Flávio Bauer Novelli, 1993, Forense), para quem, fixada a alíquota máxima pelo Senado, caberá a cada Estado-membro, mediante ato legislativo próprio – e sempre observado o teto estipulado na resolução senatorial – definir, até esse limite, qualquer outra alíquota. inobservância do teto fixado pelo Senado da República traduz, desse modo, e no que se refere à atividade legislativa dos Estados-membros, uma clara situação de desrespeito ao ordenamento constitucional. Não se pode perder de perspectiva que a restrição imposta pela Lei Fundamental – e concernente à definição do quantum máximo para as alíquotas do imposto em causa – interfere no espaço de liberdade decisória dos Estados-membros, que se acham vinculados, por isso mesmo, à estrita observância dos limites máximos fixados pelo Senado Federal (HUGO DE BRITO MACHADO, “curso de Direito Tributário”, p. 250, 7ª ed., 1993, Malheiros).O Supremo Tribunal Federal, ao recentemente apreciar a quaestio juris suscitada nesta sede recursal, proclamou, na linha da orientação
jurisprudencial que se firmou nesta corte, que, verbis: “IMPOSTO DE TRANSMISSÃO cAUSA MORTIS. ALÍQUOTA. FIXAÇÃO PELO SENADO FEDERAL – F/69, ART. 23, I. CF/88, ART. 155, IV. A nova carta constitucional manteve a antiga regra de que cabe ao Senado Federal estabelecer as alíquotas máximas do imposto de transmissão causa mortis. Diante da existência de resolução reguladora da matéria, compatível com o novo Texto, não restou espaço para o legislador estadual dispor acerca da alíquota do tributo, sob invocação do § 3º do art. 34 do to das Disposições constitucionais Transitórias. Agravo regimental improvido.”(Ag 152.456-2-RS (AgRg), rel. Min. ILMAR GALVÃO, DJU,1.10.93). assim sendo, e considerando os precedentes mencionados, nego provimento ao presente recurso. Publique-se. Brasília, 10 de março de 1995. Ministro CELSO DE MELLO Relator/csf.” (STF – AI: 168967 RS, Relator.: Min. CELSO DE MELLO, Data de Julgamento: 10/03/1995, Data de Publicação: DJ 28-03-1995 PP-07322)
Ou seja, a questão não foi devidamente analisada pela 1ª Turma do STF, que solucionou a questão apenas mencionando jurisprudência que não tem relação alguma com a presente polêmia sobre o ITBI, não rebatendo os argumentos da sociedade.
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Inclusive, recentemente a 4ª Câmara de Direito Público do TJ-SC proferiu importante deisão monocrática que manteve a sentença da 2ª Vara da Comarca de Balneário Piçarras e reconheceu que a Resolução do Senado nº 99/1981 está em vigor em relação ao ITBI. No caso em questão, foi declarada a inconstitucionalidade de lei municipal que determinava a progressividade do ITBI e determinou-se que enquanto não houvesse lei municipal estipulando uma alíquota não progressiva, deve ser aplicada a alíquota máxima de 2% prevista pela Resolução do Senado nº 99/1981. Tais decisões judiiais foram as primeiras do Brasil reconhecendo implicitamente que a Resolução do Senado nº 99/1981 foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 em relação ao ITBI.
E tais magistrados não foram os únios operadores do Direito a entenderem dessa maneira, já que há municípios brasileiros que respeitam o teto de 2% da Resolução do Senado nº 99/1981 e inclusive é possível encontrar até a positivação na lei municipal da necessidade de respeito a tal limite, como fez o município de Rio Bom (PR) na Lei nº 09/2021. “LEI Nº 09/2021.
Art. 4º. A alíquota aplicada ao valor do imóvel será sempre 2% para cálculo do ITBI, de acordo com Resolução n° 99/1981 do Senado Federal.” Alta significativa O ITBI tem sido alvo de aumentos constantes nos últimos anos em todo o Brasil, não havendo até o momento controle algum sobre sua carga tributária.
Vale lembrar que a alíquota máxima do imposto sobre transmissões a título oneroso já foi de 1%, onforme previsto pelo artigo 8º, II do Ato Complementar 27/1966. O aumento om o passar dos anos foi muito significativo, o que faz com que advocacia e o Judiciário sejam chamados para agir quanto ao problema, tendo em vista o claro caráter onfisatório da alíquota do ITBI demuitos municípios.
A análise da recepção da Resolução do Senado nº 99/1981 em relação ao ITBI pode inclusive ser um importante presidente jurídico para que se onsolide o entendimento de que compete ao Congresso Nacional limitar o efeito confiscatório de tributos por meio de lei complementar.Não haveria problema,assim, para limitar-se a alíquota de qualquer tributo por meio de lei complementar. É justamente com base nessa premissa que podemos dizer que atualmente o art. 1º, II da Resolução do Senado nº 99/1981 foi recepcionado como lei complementar.
Por fim, a questão também deve ser analisada sob o prisma do direito à moradia previsto pelo artigo 6º da Constituição, já que alíquotas elevadas de ITBI têm claro cunho restritivo para o acesso à moradia.
Fonte: Conjur: